sexta-feira, 18 de setembro de 2009

Política da amizade

Rarefeita. Esta é a palavra que melhor define os tipos atuais de convivência. Não se precisa remontar a outros tempos. Basta deixar a sensibilidade perceber em que a vida cotidiana nos transformou. Nossa identidade, nossas verdades, nossas relações, nossas expectativas e até nossos valores tem passado por contínuos e sucessivos abalos. A competição desenfreada, a ganância descontrolada e a desconfiança generalizada abalam o cerne das relações humanas, hoje tão rarefeitas quanto a expectativa de mudança. Fomos obrigados a individualizar nossa segurança e o fazemos nos suprimindo do convívio social ou formando guetos voluntários, o que nos custa a renúncia a alguma liberdade que ainda se tinha em tempos idos. Paradoxalmente, só nos sentimos livres e confiantes quando presos entre os muros por nós mesmos erguidos, na mesma proporção de sua altura e consistência.

E a confiança vai-se minguando mais a cada dia. No grande mundo, único e global, ficamos sós, por mais que todo dia melhorem nossas técnicas e até nossa capacidade comunicação. Sem sair do sofá vamos ao longe, enquanto quase nada sabemos do lugar em que estamos. Tanto lá, quanto cá, o amor e a família são indicados como soluções para nossa solidão ou para nossa falta de subjetividade, olvidando-se da importância da amizade e do seu alcance.

Para vencer ou subir na vida, mesmo a contragosto, nos sentimos obrigados a ser individualistas e agimos com egoísmo, diante do imperativo da competitividade. Assim é que, manter ou criar novas amizades tem se tornado uma tarefa árdua, reduzindo cada vez mais o número daqueles que nela se aventuram sem reservas. Isto ocorre na mesma proporção em que passamos, calculadamente, a privilegiar as relações profissionais puras, até impessoais.

Priorizar as tarefas produtivas nos tirou o tempo necessário para relações como a amizade. Nesse contexto, estamos sempre correndo, submetendo-nos a exigências de produção e consumo incessantes, o que corrói nossas energias físicas e psíquicas, nos levando, no mais das vezes, à solidão angustiante, ao estresse e à depressão.
Rios de tinta são gastos pelas ciências humanas procurando explicação para as causas da crise da nossa subjetividade e da nossa sociabilidade, além de se verificar o recurso a soluções religiosas e/ou à literatura de autoajuda.

Enquanto isso, o amor romântico, por sua vez, tornou-se um vício de paixões que tende a matar o amor e, não raro, até aos amantes, por conta da exclusão da amizade do horizonte do amor. Amizade e amor. Aquela e este, em vez de estarem conjugados, excludentes tornaram-se. Tampouco a pretensa liberdade sexual, tão propalada nos anos 60, resultou em acréscimo de liberdade e felicidade, traindo a expectativa de criar vínculos humanos mais estáveis e de amparar ou reconstruir uma subjetividade ameaçada ou destruída. As relações humanas, se não se tornaram meramente instrumentais e passageiras, assim como o são tantas relações sexuais e comerciais atuais, predominam nelas a indiferença e a desconfiança mútuas.

Depois de Platão ter assinalado uma unidade entre amor e amizade, vem de Aristóteles a distinção entre um e outro. Para ele o amor é uma emoção, enquanto a amizade é mera disposição de caráter. Na amizade importa mais o aspecto racional, sendo uma atitude moral e intelectual que visa ao amor recíproco entre os amigos, baseando-se na decisão livre da vontade e não no instinto ou na emoção. Cada um deseja e faz, através dela, o bem para o outro.

Na visão aristotélica, o ser humano não pode ter experiência mais radical e mais profunda que a amizade. Ele a põe como a única experiência que permite acessar a uma essência humana, possibilitando a realização desta mesma essência. Mas, segundo ensina, nem toda amizade consegue isso. Não o consegue a amizade que tem em vista o prazer, nem aquela que tem por objetivo a utilidade, mas só a amizade virtuosa, na qual o amigo é amado por si mesmo, e não como meio.

É, pois, a amizade, a relação humana através da qual cada um dos amigos pode ser ele próprio, e que possibilita e pressupõe que cada um seja livre e responsavelmente o que é, sem cálculos, sem simulações, sem enganar aos outros, nem a si mesmo.

Amigo não é aquele que cuida do outro, nem aquele que se deixa ou se faz cuidar pelo outro, mas quem estimula o outro a que cuide de si próprio, enquanto é estimulado pelo amigo a que faça o mesmo consigo. Nesta perspectiva, a amizade é indispensável para que possamos superar o atual empobrecimento individual e social da vida humana.

Parafraseando Kant, o lugar que damos aos outros é o lugar que damos a nós mesmos, sob um ponto de vista ético formal. Na política da amizade, nós aprendemos dos amigos e, ainda continuando a ser como somos, também mudamos. O paradoxo da amizade é o mesmo da liberdade.

Nesse contexto, sugere-se como desejável e promissora uma nova política da amizade, na esteira de uma nova ética da amizade, aliada a um cuidar de si próprio de uma forma responsável. Poderemos, assim, recuperar ou construir uma vida melhor, de mais bem-estar, e uma ética que reflita não somente o simples cumprimento de uma norma, mas uma prática refletida da liberdade, ao mesmo tempo em que valorizamos a dimensão publica da vida humana. Nesta perspectiva, as relações de amizade considerar-se-ão tão ou mais valiosas que as relações amorosas propriamente ditas, permitindo que estejamos bem com outras pessoas e melhor conosco mesmos, num contexto social também favorecido e, por isto, mais saudável.

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